Ao raiar de uma nova era, marcada pelo escrutínio minucioso dos dogmas e pela ascensão da razão e da ciência como principais bastiões contra o dilúvio da fé inquestionável, ergue-se um desafio ao qual não consigo permanecer indiferente. São escassos os comentários que têm o poder de me agitar, de me fazer vibrar com indignação. No entanto, existe uma questão, uma pergunta eterna que me desafia profundamente; como discernir o certo do errado na ausência de uma orientação divina?

Este artigo é, portanto, mais do que um mero exercício intelectual; é uma reflexão sincera sobre esta interrogação que atravessa séculos e gerações, e que tenta desafiar a nossa compreensão da moralidade numa era pós-religiosa.

Esta indagação, repleta de audácia e frequentemente proferida pelos zelosos guardiões da fé, parece, no entanto, desconsiderar a verdade mais profunda e pura que reside no cerne da existência humana; a nossa inerente capacidade de empatia e compreensão mútua. Esta é uma luz que, à semelhança das estrelas, brilha com força própria, emanando claridade e calor independentemente das sombras ou fulgores projectados por uma qualquer entidade divina.

É um farol que guia não pela imposição, mas pelo reconhecimento da nossa humanidade partilhada.

A existência de um ateu, por exemplo, desvinculada do olhar fiscalizador de um déspota celestial, não é destituída de moralidade; pelo contrário, pode e deve ser considerada uma expressão autêntica de altruísmo. Quando um ateu escolhe a bondade, fá-lo não por edictos divinos, mas por uma autenticidade que ressoa com a verdade mais pura do espírito humano.

Como bem apontou Christopher Hitchens, “a decência humana não é derivada da religião. Ela precede-a“. Este é um princípio que ecoa na essência do ser humano emancipado do sobrenatural – a compreensão de que boas acções não necessitam de quaisquer recompensas divinas, mas são, por si só, incrivelmente valiosas e necessárias.

A moralidade e a ética, esses dois conceitos pertences à condição humana, não são meras sombras projectadas pelas tochas das doutrinas religiosas. Elas são, ao invés, as melodias de um instinto social profundamente entrelaçado nas fibras do nosso ser. Como uma árvore antiga, cujas raízes se estendem profundamente na terra do tempo, a espécie humana, Homo Sapiens, floresceu e prosperou, assim, ao longo de milénios.

A cooperação e o altruísmo, tal como meras flores silvestres na primavera da humanidade, desabrocharam muito antes do surgimento de qualquer jardim de religiões organizadas.

Estas virtudes que jazem no cerne do nosso ser, encontradas no ADN que nos constitui, emergem não apenas como simples traços, mas como instrumentos cruciais para a nossa sobrevivência e consequente evolução. Na alvorada da nossa odisseia terrena, o Homo Sapiens, armado com um espírito intrépido e pioneiro, e uma curiosidade sem limites, embarcou na sua primeira grande migração, deixando para trás o berço africano que se encontrava na altura num alvoroço ambiental.

Nesta jornada épica, a luz inerente da moralidade e ética foi o elemento que guiou o homem nos seus primórdios. Esta orientação moral, nascida das profundezas da sua essência, não serviu apenas para enfrentar, mas também para prosperar diante dos implacáveis desafios que se erguiam constantemente no seu caminho.

Era a sabedoria intrínseca, um género de voz silenciosa de compreensão e cooperação, que impulsionava a espécie a avançar, superando cada obstáculo, cada adversidade, com a força unida da comunidade e do entendimento mútuo.

Cada passo dado naquela migração monumental não foi apenas um movimento físico através de terras e mares desconhecidos, mas também uma dança da alma humana, movendo-se ao ritmo de uma ética e moralidade profundamente enraizadas, perfeitamente humanas. Era esta a força que os impulsionava para frente, uma chama de sabedoria e compreensão que ardia dentro de cada um, iluminando o caminho para um futuro incerto, mas repleto de possibilidades.

Sem essa noção intrínseca de moralidade e ética, sem esse senso de união e propósito, nunca teriam cruzado as vastas e implacáveis planícies rumo a latitudes mais acolhedoras e mais frescas.

É um erro, portanto, um equívoco perigoso e falacioso, tentar atribuir a essência da moralidade e da ética humanas a uma entidade divina. Pois dentro de cada ser humano, desde os passos iniciais em terras africanas até aos dias de hoje, reside uma chama de compreensão e compaixão, um legado transmitido através das eras. Esta centelha, este sentimento inato, é a verdadeira fonte da nossa capacidade de discernir o certo do errado, a raiz profunda de onde brota toda a nossa humanidade.

A ideia do inferno, introduzida no Novo Testamento, serve como um espelho obsidiano da forma como a religião pode e consegue distorcer a moralidade. A noção de um sofrimento eterno reservado para aqueles que se desviam de uma crença específica não é apenas uma contradição moral, mas é, também, uma flagrante violação da razão e da justiça.

Este conceito representa uma era em que o medo era utilizado como ferramenta para moldar crenças e comportamentos, uma época em que o castigo eterno era apresentado como a consequência inevitável para os que ousavam questionar ou desafiar as normas estabelecidas.

A Igreja Católica abraçou tal facto, e fez do medo a sua doutrina principal.

Uma questão que se impõe no contexto da moralidade contemporânea; será mesmo moral, aos olhos vigilantes e críticos do homem moderno, a perspectiva de uma eternidade passada em desfile, sob a orientação dos lacaios de Lúcifer, simplesmente por não subscrever a um determinado credo, por não conseguir Amar o próximo como a si mesmo, ou por não conseguir evitar cobiçar as posses do próximo?

A ideia pinta um quadro que oscila entre o absurdo e o grotesco, como se tivesse sido extraída de um qualquer conto bizarro, mais adequado aos delírios de uma qualquer obra de ficção, do que aos princípios éticos que orientam a sociedade actual.

Visualize-se então um cenário mais sombrio e aterrador, o inferno; multidões em agonia, confinadas ao suplício interminável das chamas eternas, onde a carne se consome e renasce num ciclo infinito de dor. Aqui, os sons são os desesperados lamentos que se misturam com a cacofonia dissonante de uma orquestra infernal, e a batuta está nas tirânicas garras de demónios impiedosos que comandam este desfile de tormentos. Este inferno, desprovido de qualquer clemência, é o destino de almas cuja única transgressão foi, por exemplo, o pensamento livre – o questionamento, a dúvida, a recusa em prostrar-se diante de dogmas, ou a ousadia de esculpir ídolos com as próprias mãos ou de aspirar ao que é alheio.

O horror deste inferno não reside apenas na tortura física, mas na injustiça de uma condenação eterna por crimes de pensamento, por simplesmente exercer a liberdade inata de questionar. São estas as chamas que devoram não apenas corpos, mas a essência da justiça, pois o que é o inferno senão a negação absoluta de qualquer misericórdia e razão? E ainda assim, frente a tal visão de horror, o observador contemporâneo pode não encontrar motivos para temer, mas sim para reflectir com ironia sobre a estranha moralidade que coloca o peso eterno de um castigo sobre o efêmero acto de pensar.

A ironia reside na transformação de um conceito teológico, destinado a incutir moralidade através do medo, numa caricatura de si mesmo aos olhos da ética contemporânea. A ameaça do inferno, outrora um poderoso instrumento de controlo moral e social, parece agora mais uma relíquia de um passado distante, uma nota de rodapé na longa história do pensamento humano, que evoluiu para além de tais conceitos binários de recompensa e punição eterna. Mas existe, ainda, na mente de praticamente todos os crentes, e defendido como um local real pelas altas patentes clericais.

A Bíblia, nos seus textos, reflecte não apenas as crenças de um tempo, mas também as práticas sociais e morais da época em que foi escrita. Nas suas páginas, encontram-se justificações para actos que hoje consideramos profundamente imorais, como o tráfico humano, a limpeza étnica, a escravidão, e o massacre indiscriminado. Estes elementos reflectem a mentalidade e os costumes de sociedades antigas, distantes da compreensão e dos valores éticos que defendemos na actualidade. Portanto, ao interpretar estes textos antigos, é crucial reconhecer o contexto histórico e cultural em que foram criados, e admitir que foram todos, sem excepção, criados pela mão do homem.

A moralidade, longe de ser um conjunto estático de regras, é um conceito dinâmico, que evolui com o tempo e com o progresso da compreensão humana sobre a justiça, a empatia e a igualdade.

O conceito de amor compulsório, promovido por várias religiões, é outro exemplo de como estas podem distorcer e corromper os mais nobres sentimentos humanos. Exigir que se ame o próximo como a si mesmo, ou amar uma entidade divina que temos de temer também, não é apenas irrealista, mas também insalubre mental e moralmente. A imposição de um amor forçado e o medo de um deus tirânico não são indicativos de uma sociedade saudável e justa, mas sim de um regime totalitário, onde o livre pensamento e a autenticidade emocional são suprimidos.

A desmitificação da relação entre religião e moralidade é crucial no nosso caminho para uma compreensão mais profunda da natureza humana.

A religião, frequentemente, mascara a verdadeira essência da moralidade e ética, substituindo-as por um conjunto de regras e dogmas que, muitas vezes, entram em conflito directo com a razão e a empatia.

Como Christopher Hitchens disse outrora:

Numerosas religiões aproximam-se agora de nós com sorrisos bajuladores e mãos estendidas, como mercadores num bazar. Elas prometem consolo, solidariedade e elevação espiritual, competindo entre si num mercado de crenças. Contudo, devemos recordar-nos do comportamento bárbaro que estas mesmas religiões adoptaram quando detinham o poder, e impunham ofertas que ninguém podia recusar.

O argumento de que a fé religiosa contribui para a moralidade das pessoas é repetidamente desmentido pela evidência. Ao contrário, a fé muitas vezes leva as pessoas a serem mais mesquinhas, egoístas e, acima de tudo, mais ignorantes, mais estúpidas. A crença num ditador celestial que supervisiona e julga cada acção e pensamento, não promove um verdadeiro sentido de responsabilidade moral, mas sim um medo paralisante e uma obediência cega à autoridade.

Isto conspurca as relações humanas, envenena-as.

O exemplo histórico da escravidão, frequentemente justificada e até santificada pelas escrituras religiosas, destaca a capacidade da religião de ser um instrumento para perpetuar injustiças e desigualdades profundas. Durante séculos, textos sagrados foram invocados para apoiar e até encorajar a prática da escravidão, misturando a fé com a opressão de forma indissociável.

Esta realidade sombria revela como a religião, frequentemente percebida como eterna guardiã da moralidade, pode na verdade abrigar e alimentar as piores facetas da natureza humana. Enquanto a luta pela abolição da escravidão avançou, muitas vezes sob a bandeira de narrativas religiosas reformadas, é fundamental reconhecer que estas mesmas crenças, em tempos anteriores, forneceram a base para a legitimação da escravidão.

Ao reflectirmos sobre este capítulo da história, vemos claramente que os princípios morais podem, e de facto mudam, muitas vezes em desacordo directo com as interpretações anteriores dos mesmos textos religiosos. Assim, a história da escravidão e da sua justificação religiosa, serve como um poderoso lembrete da necessidade de questionar e reavaliar constantemente as bases morais e éticas que orientam as nossas sociedades.

Libertar-se do jugo religioso não implica a perda da moralidade; pelo contrário, representa a sua redescoberta numa forma mais pura. Esta nova moralidade, enraizada na reflexão longa, no respeito mútuo e numa genuína empatia, transcende o medo de castigos divinos e a ânsia por recompensas celestiais.

É uma moralidade que celebra a dignidade intrínseca de cada indivíduo, sem distinção de credos, etnias ou nacionalidades.

Trata-se de uma ética que floresce na liberdade de pensamento, na troca justa de ideias e na valorização da experiência humana em toda a sua diversidade. Esta moralidade, livre das amarras do dogma, abre caminho para uma sociedade mais compassiva, justa e verdadeiramente inclusiva, onde cada ser humano é valorizado não pelo que acredita, mas pela essência do que é.

Em síntese, a essência da verdadeira moralidade não se encontra nas escrituras sagradas ou em mandamentos divinos, mas sim no espírito da humanidade. Ela manifesta-se na nossa capacidade de empatia, na procura constante por integridade, e no esforço para tratar todos com respeito e dignidade. Esta abordagem não nasce do temor a uma divindade punitiva, mas do reconhecimento da nossa conexão intrínseca enquanto seres humanos.

Esta é a moralidade de um mundo sem deuses, uma ética que abraça o humanismo secular, dedicada a maximizar o bem-estar de todos os seres vivos. Ela fundamenta-se na ciência e na razão, na empatia e na reflexão Socrática, pilares que sustentam uma sociedade onde cada indivíduo é valorizado, e o progresso colectivo é perseguido não por imposições celestiais, mas pelo desejo genuíno de construir um mundo melhor para todos os seres vivos.