A argúcia de Santo Agostinho de Hipona, notório arquitecto da doutrina cristã, manifestou-se com particular brilhantismo na concepção de um dos mais peculiares anexos teológicos; o limbo das crianças. Com um gesto que quase poderíamos confundir com um floreio de mão teatral, Agostinho dotou o firmamento espiritual de uma sala de espera para as almas dos recém-chegados ao mundo, ainda não consagrados pelo baptismo.

Ah, que incrível e divina a sua mestria! Com a mesma facilidade com que um dramaturgo desenha um anticlímax, Santo Agostinho esboçou um destino para os inocentes — um purgatório para os puros, numa narrativa onde a entrada no paraíso é adiada por falta de um pouco de água na testa, e algumas palavras sagradas. Uma solução tão elegantemente elaborada, como tragicómica na sua necessidade.

Este senhor génio de outrora proclamou a solução para um enigma que, na realidade, não passava de um eco vazio. Somente as mentes adornadas com as insígnias da fé poderiam perscrutar tal abismo inexistente e, com uma seriedade digna de melhores causas, condenar almas inocentes a um exílio no nada, uma existência na inexistência. Um feito grandioso, certamente, resolver um problema que a própria razão desconhece, inscrevendo assim no cânone religioso mais um capítulo da saga de como complicar o descomplicado.

Foi, então, sob o pontificado de Bento XVI (Ratzinger), que a Igreja, num gesto que beira o absurdo, removeu discretamente o limbo do seu repertório doutrinário. A Comissão Teológica Internacional, numa jogada que pareceu mais um aceno à modernidade do que uma real iluminação espiritual, descreveu a velha visão da salvação como: “uma visão indevidamente restritiva“.

Com uma espécie de piscar de olhos teológico, insinuaram também que “existem razões para esperar que Deus salve os infantes precisamente porque não foi possível batizá-los“.

Ironia das ironias, a instituição que uma vez ponderou o destino eterno de almas inocentes, ainda que não o tivesse oficializado a 100%, agora, ao enfrentar um mundo menos inclinado a aceitar tais noções, recua num dos éditos mais escatológicos do catolicismo.

A Igreja concede, talvez com um suspiro de alívio, que “é cada vez mais difícil para as pessoas aceitar que um Deus justo e misericordioso exclua do paraíso eterno os infantes sem pecados pessoais, sejam eles cristãos ou não“. Desta forma, o dogma não proclamado, porém zelosamente defendido, é arquivado, não por desígnio divino, mas pela simples perda da sua relevância no palco do pensamento contemporâneo.

Quando sou interpelado sobre a existência de um ente supremo, a minha resposta inclina-se perante a evidência da mente humana; Deus existe, sem dúvida, mas confinado às fronteiras da imaginação dos crentes. Nas mentes dos mais devotos, essa existência é tão concreta quanto a matéria que compõe o cosmos — uma realidade psicológica inquestionável que fomenta tanto a devoção quanto a discordância.

O que os líderes religiosos não parecem captar — ou talvez o façam com uma clareza desconcertante — é que, para o fiel, para o coração pulsante da crença, as instruções divinas não são meras directivas passageiras, mas sim gravuras na pedra da existência, regras a seguir, conceitos a memorizar. Ao promulgar leis com a chancela do eterno e depois rescindi-las, comete-se um acto de extrema vilania, especialmente quando se tratam de verdadeiras almas inocentes; crianças.

Como poderá um pontífice olhar nos olhos de pais enlutados, que durante décadas carregaram o luto de um filho perdido ao obscuro limbo, e proclamar que tal domínio nunca existiu, e esperar normalidade? É um acto que transcende a insensibilidade; é um despertar para um pesadelo, uma tortura da consciência que nenhuma alma deveria ter de suportar.

Este suposto local divino mas sem divindade, que enchia de desespero os corações dos pais que viam os seus falecidos filhos como prisioneiros de um vazio celestial, é agora um capítulo encerrado, relegado ao anedotário da teologia em questão.

A doutrina da Igreja, outrora tida como imutável, revela a sua maleabilidade temporal ao abandonar conceitos dados como absolutos. A reviravolta doutrinária sobre este limiar espectral onde as almas dos não batizados aguardavam revela o carácter humano, demasiado humano, de tudo o que provenha do clero.

A religião, assim, não deve fazer-nos esquecer o passado de subjugação e medo. Não se pode simplesmente reescrever a história, apagando os séculos de trauma e poder clerical absoluto, onde a crença era imposta sob a ameaça da morte. Este artigo pretende ser um convite à reflexão sobre a substância da fé e a origem das doutrinas que, por tanto tempo, moldaram a existência humana.

Num gesto que talvez procure revestir o catolicismo com um verniz de modernidade, Francisco, o actual Papa, acena, finalmente, à comunidade transgénero com a bênção do baptismo. Esta aparente abertura poderia ser louvada como progresso, mas, na verdade, não passa de um ultraje à doutrina que se pretendia eterna. Homossexuais, ainda vilipendiados por escrituras ancestrais, aguardam um gesto de magnanimidade semelhante, e até lá são meras bestas pecadoras, condenados a tudo e nada, por tentarem satisfazer o seu destino sexual da única maneira que lhes faz sentido. Monstros, por terem uma forma diferente de Amar.

Cada ajuste doutrinário, cada nova interpretação que emerge das sombras do dogma, sublinha apenas o indelével traço da autoria humana nas escrituras sagradas. Não são as mudanças tardias que redimirão séculos de dogmatismo e exclusão, nem reescreverão as páginas da história marcadas pelo selo da intolerância.

O humanismo secular, com a sua bússola moral firmemente solidificada na razão e na empatia, permanece vigilante, recordando-nos que, por detrás de cada proclamação de divindade, está o eco da humanidade em toda a sua imperfeição, procurando a redenção não no celeste e no divino, mas sim no terreno fértil do entendimento e respeito mútuos.