As Jornadas da Juventude (2023)


O Papa João Paulo II, cujo carisma e influência se destacaram no seu papel como líder da Igreja Católica, é frequentemente lembrado como uma figura proeminente num mundo em constante agitação moral. A sua habilidade em reunir pessoas de diferentes origens sob a bandeira da fé é reconhecida em diversas esferas, no entanto, é importante examinar objectivamente a sua influência e legado.

Foi sob a sua égide que, em 1984, um capítulo notável da história religiosa e cultural foi escrito, o nascimento das Jornadas Mundiais da Juventude; um evento destinado a congregar a juventude do mundo em comunhão e celebração da espiritualidade católica. Este feito monumental, que merece ser analisado com lentes críticas e perspicácia filosófica, é o ponto de partida para uma viagem intelectual rumo à compreensão e, quiçá, à crítica da fé e das suas implicações no mundo contemporâneo.

Em teoria, esta iniciativa teria o mérito de procurar uma união global através da fé, num período em que a fragmentação ideológica e o isolamento pareciam ser a norma. Todavia, ao criar tal evento, será que o Papa João Paulo II, esse bom ser humano, teve em consideração o impacto potencialmente nefasto que a sua “celebração da fé” poderia ter num mundo cada vez mais secularizado? Será que ponderou sobre o fardo que tal evento poderia impor ao país anfitrião, nomeadamente Portugal, que em 2023 recebeu esta manifestação de devoção religiosa?

Portugal, a nação que se inscreveu na cartografia mundial, não meramente por traçar paralelos e meridianos, mas por audaciosamente redefinir os contornos do conhecido e do desconhecido. A terra onde o espírito indomável de antigos exploradores se funde com os sussurros do Atlântico, guardião eterno das proezas lusitanas de outrora. Neste solo, impregnado de relatos épicos e heróis intransigentes, o cenário estava agora montado para um novo protagonista, em pleno século XXI, em terras laicas; Papa Francisco, o vicário de Cristo na terra, invadiu a terra de Viriato, juntamente com os seus soldados. E qual foi a sua mensagem de esperança, as palavras que milhões estavam à espera de ouvir?

“Todos. Todos. Todos”

Uma trindade que, na sua tentativa de ser universal, paradoxalmente, destila a essência de uma doutrina cujos matizes e nuances resistem a tal simplificação. Ah, o sarcasmo requintado de tentar confinar o universo teológico numa gotícula de palavreado insípido!

Nas sinuosas veredas e atalhos da nossa consciência colectiva, permanece um meticuloso registo de séculos de indoutrinação eclesiástica, actos de devoção cega e tormentos perpetrados em nome do divino. Em pleno século XXI, numa era pulsante de erudição e discernimento, é quase desconcertante constatar que palavras cirurgicamente escolhidas, proferidas por um sumo pontífice, herdeiro das chaves de Pedro, possam ser assimiladas como um néctar divino, carregado de revelações que, para mim e para a maioria das pessoas, são meras lições básicas de humanismo, há muito conhecidas e praticadas por quem não necessita de qualquer pompa religiosa para as entender, e para as praticar.

Nas esquinas virtuais das redes sociais, esse oráculo tumultuado da consciência colectiva, fomos inundados por hinos de adoração e ovações desmedidas, dignas de curiosidade científica. Publicações arrebatadas onde hinos foram cantados à iluminação e intelecto de sua santidade, o Papa.

Todos. Todos. Todos. Um lema que, à superfície, poderia soar como a ária da inclusão que muitos fantasiosamente ansiavam. Todavia, ao navegarmos pelas águas turvas da doutrina e da historiografia eclesiástica, revela-se que este todos tem, de forma contraditória, um filtro bastante rigoroso.

E os homossexuais? Ah, sim, aqueles seres que, segundo os anais desta instituição venerável, foram relegados a um estatuto quase mitológico de criaturas transgressoras, bestas, dançando perigosamente na linha ténue entre a humanidade e a heresia, sem alma, entregues às intempéries do cosmos, por serem diferentes, por terem uma forma diferente de Amar. Monstros de contos infantis, almas errantes excluídas da magna celebração celestial. Estarão eles incluídos nesse todos que o Papa entoou com tanto zelo, e que os crentes receberam, aparentemente, de maneira quase fanática, quase cega?

E os praticantes de crenças alternativas, e legiões de fiéis de outras crenças? Receberão eles um convite VIP para a grande festa no paraíso, ou estarão destinados a arder p’los confins do inferno? Estarão eles também embrulhados neste manto de aceitação papal? Têm eles, também, lugar reservado no paraíso?

Ah, a magnanimidade de uma igreja que, através dos séculos, brandiu a espada e a cruz com igual fervor, prometendo a salvação enquanto, simultaneamente, definhava almas em purgatórios terrenos e celestiais. E, agora, na praça pública, ouvimos conselhos humanísticos elementares, que a maioria de nós, esperava-se, já tivesse absorvido nos primórdios da infância, muito antes de qualquer introdução à doutrinação religiosa.

A grande ironia é que Confúcio, por exemplo, séculos antes do estabelecimento da Santa Sé, já tinha gravado em pedra a regra de ouro: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti“. Uma máxima que, por si só, deveria ser suficiente para guiar a humanidade sem o auxílio de dogmas e textos sagrados, ainda que esteja longe de ser à prova de tudo.

Nesta tessitura intricada de eventos e crenças que definem a nossa era, vemo-nos confrontados com um fenómeno quase teatral. A nação lusa, envolvida num rebuliço quase juvenil, rendeu-se aos encantamentos retóricos de um líder eclesiástico que, aparentemente, revelou um segredo que era tão antigo quanto o tempo: a essência básica do humanismo, e o que nos permitiu fugir de África e evitar a extinção total.

Um momento revelador, sem dúvida, mas quão irónico é que, justamente a religião católica, sobrecarregada por um código de regras tão excludente que muitos jamais poderiam aspirar a pertencer oficialmente à sua fé, venha agora proclamar uma mensagem de universalidade? Os homossexuais são apenas a ponta do icebergue desta lista de “indesejados”, e esta ironia não pode ser subestimada, e não será.

Aqui jaz o absurdo mais pungente; a cega adoração e a dissonância cognitiva que permitem a tantos suspender a crítica, e aceitar estes ensinamentos como novidades reveladoras. Nesta dança de deslumbramento, temos que nos perguntar; Será o fanatismo uma das chagas mais resistentes da humanidade? E, mais ainda, por que permitimos que uma instituição, tingida com um passado de contradições e banhada a sangue, nos dite o que já deveríamos saber por instinto?