
Quando acreditava que a complexidade da condição humana já pouco teria para me surpreender, surge a controvérsia em torno da coroação de Marina Machete como Miss Portugal. Este evento ressuscita, com inquietante eloquência, a anacrónica inclinação de certas mentalidades em confundir identidade com mera anatomia — mentalidades essas que, em audaciosa autoilusão, proclamam-se árbitras de sabedoria e discernimento.
Embarquemos então numa odisseia de argumentação que esquadrinha os confins do humanismo, da ciência e da razão, tríade que parece ter escapado à análise de Joana Amaral Dias (JAD), psicóloga lusitana de mérito questionável neste contexto específico.
O cenário é intrigante; Marina Machete, uma mulher transgénero, coroada como Miss Portugal, ergue-se não apenas como um símbolo de beleza, mas também como a personificação de uma coragem que poucos possuem—particularmente quando se é alvo de visões retorcidas e insidiosas, praticamente durante toda uma vida.
As visões reducionistas, que encerram toda a complexidade humana nas fórmulas do cromossoma XY e XX, parecem ser o estandarte de JAD. A condição humana no entanto, com toda a sua rica variedade de experiências e emoções, resiste a ser encapsulada por tão estreitos parâmetros biológicos.
O reducionismo genético é um vestígio ancestral de uma visão do mundo dicotómica, que serve apenas para cristalizar preconceitos. Tal miopia conceptual não só desconsidera a experiência vivida de inúmeras pessoas transgénero, como também ignora o consenso científico e médico, que abraça uma perspectiva mais inclusiva e compassiva da identidade de género.
Quando JAD sugere, por exemplo, que “homens são mesmo bons, são campeões“, entre outras, compreendo a intenção irónica, mas a ironia, por vezes, é um espelho onde se reflectem as profundezas inconscientes da sociedade.
Ao lançar a sua perspectiva cromossómica sobre o tema, JAD não é a única voz a ecoar tal visão. O coro de comentários subsequentes ao seu artigo revela um tecido social ainda saturado de preconceitos e incompreensões. Tal cenário apenas sublinha a imperiosa necessidade de impregnar o debate público português com uma abordagem humanista secular mais evoluída, dedicada à maximização do bem-estar e da dignidade de todos os seres humanos, com base na ciência e no pensamento socrático.
Ao afirmar que mulheres estão a ser suplantadas por homens em diversas áreas, JAD perpetua, inadvertidamente, os mesmos estereótipos de género que parece criticar. Em vez de erguer as mulheres à igualdade, o seu discurso confina-as a um plano secundário, subvalorizando, por sua vez, a sua agência e individualidade. Seria mais nobre e consonante com um humanismo secular, abraçar a riqueza da experiência humana em todas as suas nuances, permitindo que cada pessoa seja avaliada pelas suas qualidades intrínsecas, pela sua própria métrica, e não por marcadores biológicos ou sociais obsoletos.
O que é de facto extraordinário e perigoso não é uma mulher trans ganhar um concurso de beleza; é a perpetuação de um discurso que invalida a sua existência, e reduz questões de identidade a uma grotesca caricatura. Numa altura em que a nossa compreensão da complexidade humana nunca foi tão rica, relegar pessoas a categorias binárias é não só intelectualmente preguiçoso, mas eticamente questionável.
E aqui está um dos grandes desafios do nosso tempo; enraizar o diálogo público na empatia e na razão, abraçando a complexidade da existência humana, em vez de submetê-la a simplificações grosseiras. Como indivíduos comprometidos com a ampliação do conhecimento e a promoção do bem-estar humano, não podemos permitir que o ódio e a ignorância se alastrem sob o disfarce de argumentação “científica“.
No âmbito de uma discussão verdadeiramente socrática, cada voz tem o direito de ser ouvida, mas não todas têm o mérito de serem levadas a sério. Escolhamos, portanto, dar espaço ao discernimento, à equidade e ao respeito mútuo, qualidades estas que não só enriquecem a nossa vida social, mas também ecoam na eterna sinfonia do universo.