
Segundo as ressonâncias sacras das escrituras e das imponentes vozes eclesiásticas, somos agraciados com o fantástico dom do pecado original desde o nosso primeiro choro neste mundo. Sim, chegamos já manchados a rebolar na lama metafórica da existência! E, como se tal desígnio não fosse suficiente, somos ainda instruídos, com uma pitada de audácia celestial para dar sabor, a encontrar o bem-estar nesse mesmo estado peculiar de miséria.
Ah, prezado leitor, permita-me continuar a dissecar este intrincado código moral – aquele que, dizem-nos, foi elegantemente esculpido pelas mãos do divino senhor. Este código, com a sua inigualável finura, parte do pressuposto de que somos, desde o nosso alvorecer existencial, criaturas fundamentalmente imperfeitas. Solicita, com impunidade, que façamos uma ostentação da nossa rectidão, ao aceitarmos a nossa inerente depravação sem o mínimo de evidência concreta. É como se nos pedissem para iniciar uma viagem, não com uma bússola de virtudes, mas com um compasso de vícios – compasso esse que, com uma dose generosa de ironia, somos nós mesmos, somos lixo cósmico. Assim, a luminosidade da virtude irradia justamente daquilo que, porventura, não encarnamos…Que deliciosa farsa divina é esta, afinal?
Por um breve momento, contemplemos a enigmática charada do pecado original; Supostamente chegamos a este palco existencial já com um bilhete para o lado errado da moralidade, e ainda assim, o destino espera que paguemos ad infinitum, nas fornalhas avassaladoras do inferno, por uma sina que jamais requisitámos. Seria como enviar uma criança para o calabouço, não pelas potenciais travessuras que possa ter cometido, mas sim por um qualquer infortúnio congénito. A ironia, na sua mais refinada expressão, é quase palpável. Onde, pergunto, neste intrincado teatro cósmico, se esconde a suposta justiça deste design?
E, como é de se esperar, os zelosos defensores da divindade apressar-se-ão em contrapor: “Não, não viemos ao mundo já manchados pelo pecado; surgimos foi com uma insidiosa inclinação para a transgressão.” Ah, a retórica milenar e as suas eternas artimanhas! Todavia, se se reflectir, uma liberdade intrínseca que traz consigo uma predisposição é semelhante a um jogo com cartas marcadas. Caso a inclinação seja fruto de uma escolha, como poderia ser a nossa fiel companheira desde o berço? Se não é opção, então, a nossa tão aclamada liberdade é, na verdade, uma farsa magistralmente encenada.
Considere-se por um instante a divindade que arquitecta tal cenário. Se herdamos a tendência para pecar, ou Deus é impotente para evitar que tal flagelo passe de geração em geração, ou pior, arquitectou tudo propositadamente. E neste último caso, que tipo de Deus seria este, que nos coloca num mundo repleto de tentações e, ainda assim, nos condena pelos inevitáveis deslizes? A lógica aqui parece mais enigmática que os segredos da Esfinge, ou do Santo Graal.
O fascismo, entendido como a ala mais radical do catolicismo, tem as suas raízes na dádiva de comandos impossíveis de cumprir, uma característica que ressoa com o totalitarismo. Comparar tais ideologias, seja ela política ou eclesiástica, pode revelar as nuances das doutrinas que regem a humanidade.
Ao refletir sobre essas ideias, tentei, em diversos momentos, encontrar explicações na fé cristã. Afinal, teria de haver alguma resposta que fizesse sentido, certo? No entanto, as tentativas de clarificação frequentemente evitavam as questões centrais ou simplesmente desencadeavam novos enigmas. O eterno retorno ao “Deus age de formas misteriosas” poderia ser uma saída fácil, mas tal caminho seria desonesto.
JOÃO NASCIMENTO – 2023