A INCRÍVEL REVELAÇÃO DIVINA


A tragicomédia da existência humana, esta tapeçaria multifacetada que nos fascina e confunde, esconde por vezes contornos que, ao serem examinados de perto e com atenção, parecem ultrapassar o próprio conceito de sátira. É o caso da alegada revelação no deserto, esse momento divino que supostamente nos outorgou o que chamamos de moralidade e ética, e que elevou a raça humana ao nível exigido por Deus, mas só a partir daquela instância temporal, atenção! Este cenário torna-se teatral, onde a ironia e a sabedoria se entrelaçam, tecendo um enredo que exige uma escrutinação aguçada e complexa, isenta de dogma.

O deserto, um cenário árido e inóspito, foi eleito como palco de uma surpreendente epifania celestial. Foi ali que o majestoso divino, após eras de um enigmático silêncio, decidiu brindar uma tribo perdida com as pérolas da ética e da moralidade, uma escolha tão peculiar, tão específica e exclusiva, em toda a sua magnificência. Como se, de repente, o Divino, essa entidade infinitamente sábia e poderosa, tivesse considerado o momento propício para a revelação, olhando para a sua criação com satisfação cósmica, e decidindo que, sim, era hora de a humanidade ser dignamente instruída.

Imagine-se então, a tribo de Israel, essa magna congregação escolhida por Deus para ser receptora da verdade divina, a vaguear durante anos p´lo deserto, com uma moralidade às avessas. Pergunto, então; Homicídio, roubo, perjúrio – todas estas acções, na sua mais nefasta simplicidade, eram encaradas como gestos dignos, até que a revelação no Monte Sinai as redefiniu como intoleráveis? Quem diria que uma simples manifestação celestial no deserto seria o suficiente para ensinar esta tribo o que é, ou não, kosher? O absurdo desta narrativa convida-nos a uma reflexão jocosa, e a um riso cínico, tão eloquente quanto a alegação em si.

É uma ironia sumptuosa imaginar que durante milénios, enquanto o Senhor observava a nossa trivial existência, os chineses, por exemplo, já floresciam em cultura e sabedoria, os sumérios já delineavam leis, e outras nações erguiam-se em dignidade e razão. E, no entanto, o Deus dos Israelitas, optou por se revelar na única parte daquele zona onde não há petróleo, à tribo mais perplexa, agressiva, e analfabeta, para instilar a moralidade no planeta Terra. Uma escolha altamente estratégica, sem dúvida! A suposta necessidade desta revelação no deserto torna-se um enigma que desafia a lógica. Imaginar que, até aquele instante cósmico, a humanidade vagueava num limbo ético, sem rumo ou propósito moral, é uma noção que se aproxima do absurdo.

Esta narrativa, que atrai os crédulos e confunde os racionais, torna-se um ultraje para quem se atreve a fazer perguntas. A insinuação de que a moralidade foi um presente celeste, concedido numa espécie de teatro do deserto, é um insulto não só à história, mas à essência da humanidade, e aquilo que nos define.

A imagem do deserto, esse palco estéril mas fértil de revelações divinas, ergue-se como um símbolo eloquente da nossa capacidade para abraçar o insensato, e o ilógico. É uma metáfora que nos impele a examinar a nossa inclinação para confundir miragens com verdades, optando muitas vezes pela sombra da superstição em detrimento da luz da razão. A nossa verdadeira tragicomédia encontra-se, então, neste enredo: uma narrativa inventada com a precisão de um ourives, uma moralidade tão autêntica quanto um desenho de uma criança, e uma verdade que, ao ser desnudada, revela a extraordinária capacidade humana para se perder nos labirintos da fé. E assim, somos convidados a ponderar se a própria crença não será, no final, uma ironia tão subtil quanto a ideia de encontrar um oásis de sabedoria no mais desolado dos desertos.


JOÃO NASCIMENTO – 2023