Num cosmos ainda não influenciado pelas nuances da ciência, e permeado por dúvidas existenciais profundas, a humanidade dirigiu a sua contemplação aos vastos firmamentos, tentando desvendar soluções que oscilavam entre o domínio da metafísica, e a intrincada compreensão fenoménica do mundo material. A religião, nesse sentido, foi a nossa primeira tentativa – e admitamos, quão tentadora foi –, de entender o cosmos. Fomos, assim, aconchegados por narrativas celestiais e guiados por místicos rituais, tentando ao mesmo tempo, decifrar os enigmas da Medicina, da Astronomia e até mesmo da História e da Física. Mas será que a nossa primeira tentativa foi, de facto, a melhor? Ou, paradoxalmente, terá sido efectivamente a pior, a mais inapta?

Imaginemos a seguinte cena; encontramo-nos, por mero capricho do destino ou má planificação turística, a vaguear por uma qualquer metrópole exótica, nalgum recanto quase esquecido deste nosso planeta. O crepúsculo já mergulhou os seus pincéis no horizonte cansado, e as luzes urbanas cintilam com a tenacidade de um poeta ébrio. Somos forasteiros em terra alheia, desamparados nas suas ruas labirínticas, quando, qual não é o nosso espanto, emerge uma figura inusitada; um cego, aparentemente gentil que, apesar da sua obstruída visão, carrega consigo o mapa mental daquela selva de pedra onde nos encontramos. Ah, o paradoxo! Aqui estamos, reféns da sua sabedoria oculta, enquanto ele nos guia com real mestria pelo véu frio e sombrio da noite. E, por uma curiosa serendipidade, assim foi a religião nos seus primórdios – a nossa bússola na mais densa noite do desconhecido humano. Afinal, na ausência de ferramentas epistemológicas mais apuradas, o que mais poderíamos fazer senão agarrar-nos à primeira tábua de salvação que flutuasse no mar de incertezas da existência?

Porém, eis que a aurora do discernimento se fez anunciar; A ciência, que aliada ao escrutínio meticuloso do pensamento, iluminou recantos outrora tapados pelo manto da crença. E, à semelhança do cego que nos serviu de guia nas trevas, perguntamo-nos: sob a clareza plena do dia, manteríamos a sua tutela, continuaríamos a usar o cego como guia?

A importância histórica da religião é incontestável, contudo, como qualquer ferramenta, tem o seu tempo e lugar onde melhor poderá ser usada. Tal como ninguém empregaria um martelo na intricada tarefa circular de apertar um parafuso, qual seria o propósito de nos fiarmos na religião como referencial norteador num universo pleno de revelações científicas, e sapiência empírica? Não podemos negar a beleza poética das narrativas religiosas. Mas numa era de rigor intelectual, faz realmente sentido tomar decisões vitais baseadas numa ferramenta que, embora reconfortante, se mostra incrivelmente desfasada da realidade?

No vasto teatro cósmico onde se desenrolam as maravilhas do universo, já não subsistem enigmas que necessitem da muleta do sobrenatural para serem decifrados. A religião, inerentemente ligada ao domínio do transcendente, já não é requisitada como chave explicativa. Actualmente, todos os fenómenos podem ser elucidados sem a necessidade de invocar divindades, artifícios místicos ou quaisquer outras magias ocultas.

O nosso homem cego, com toda a sua sabedoria, ainda tem um lugar neste mundo, no entanto – não como o nosso principal guia, mas como um lembrete poético da nossa jornada colectiva. Sob a luz brilhante do conhecimento contemporâneo, talvez seja hora de admitir que existem guias mais aptos a mostrar o caminho, e aprender a domesticar a religião, diferenciando entre o numinoso e o sobrenatural.

Confundir nostalgia com necessidade é, de certa forma, uma negação da evolução do pensamento humano. E, afinal, quem deseja permanecer perdido quando o mapa da razão está tão claramente à nossa frente?


JOÃO NASCIMENTO – 2023