É MAIS QUE ESTRANHO


Ah, o século XXI! Esse vibrante palco de avanços tecnológicos, de mentes esclarecidas e iluminadas, e… imagine-se, uma tenaz sobrevivência de rituais arcaicos que, por alguma razão cósmica desconhecida, ainda têm o seu camarote reservado na ópera que é a vivência da humanidade. Falo, claro, e neste caso em particular, da venerada religião católica, essa inabalável sinfonia de ética, a epítome indiscutível de benevolência e generosidade – que, ocasionalmente, nos faz elevar uma sobrancelha em intrigada surpresa, ou subtil indignação. Poder-se-ia argumentar que existem, quem sabe, alternativas mais alinhadas com a contemporaneidade, seja no acolhedor seio do humanismo secular ou até, imagine-se, em outras correntes teológicas (ver Quakers), que talvez ecoem de forma mais harmoniosa com as ressonâncias do zeitgeist actual. Oh, a ironia de se viver numa era de explorações interplanetárias enquanto ainda se cantam hinos de tempos medievais, ou se diz em uníssono numa missa “Por minha culpa, minha tão grande culpa“, numa demonstração de submissão espiritual total.

Ah, o celibato dos padres católicos! Essa esplêndida escolha de vida que molda qualquer homo sapiens num ápice de serenidade psicológica. Quem precisa de Freud, ou de terapia, quando se tem a graça divina? E as destemidas mulheres, que com fervor e, decerto, uma pitada de masoquismo, optam por renunciar à sua natureza, tornando-se freiras — as pacíficas soldadas no exército da divindade celestial que, entre um pedido e outro, raramente retribui, mas exige tudo. Ah, e o verdadeiro tour de force? O ex-Papa, o Sr. Ratzinger, num breve interlúdio como representante divino terrestre, como vigário de Cristo na terra, proclamou com toda a sua magnificiência, que a SIDA é um contratempo, mas os preservativos? Ah, esses são o autêntico apocalipse, inventados por Lúcifer! Afinal, quem precisa de contraceptivos quando se pode equiparar planeamento familiar a um crime hediondo, a homicídio? É mais que estranho, mas aparentemente, os preservativos são inimigos do catolicismo pois são assassinos em massa, tal como um acto de sexo oral que culmina em libertação, é, decerto, considerado canibalismo. Todos os chefes da Igreja Católica têm lutado contra o uso de preservativos, e em continentes como a África, o sítio que menos precisa de planeamento familiar, claro, levam estes ensinamentos à letra, e por conseguinte, resultam numa perpetuação da miséria humana.

Na mesma altura em que descobrimos o Bosão de Higgs, na mesma altura em que metemos um telescópio em órbita – James Webb -, e conseguimos olhar para trás no tempo, quase até ao início do espaçotempo, ainda temos humanos que pensam que não há mais nada para descobrir, que nada existe que não possa ser explicado a recorrer à metafísica da religião, ou aos escritos redigidos séculos depois dos ditos acontecimentos bíblicos. Será que a estrada para a santidade está realmente pavimentada com tanta restrição, tanta proibição, tanto dogmatismo? É mais que estranho, hoje em dia, pensar que uma das preocupações principais de Deus, o eterno ditador celestial, está directamente relacionada com a nossa sexualidade, com quem temos sexo, como fazemos sexo, e em que posição. É mais que estranho também, o facto de uma interacção sexual ser vista como uma função apenas, e não como algo potencialmente recreacional, por exemplo.

Ah, os leigos! Esses proeminentes bons católicos, que marcam presença nas igrejas aos domingos, que se confessam fervorosamente, e generosamente enchem os cofres eclesiásticos com os troquinhos que trazem para colocar nos cestos, e não fazem a pergunta “para onde vai o dinheiro?“, ou “por que raio é que isto faz parte do protocolo missal?”. Mas, eis que surge a real dicotomia: ao raiar da segunda-feira, metamorfoseiam-se em exemplos vivos de um manual de antiética, oscilando entre cretinices e traços sociopáticos, deturpando a boa vivência de quem os rodeia, sabendo sempre que podem limpar a alma no fim de semana. Esquecem-se dos valores basilares defendidos pela sua igreja como sacro-santos, como a tolerância e a compaixão, e a aceitação de tudo e todos. No entanto, a grande astúcia reside na sua retórica defensiva, onde prontamente reconhecem a sua natureza pecadora, como se isso lhes concedesse uma indulgência contínua. Talvez acreditem piamente que, diante do confessionário consigam lavar-se das suas falhas, retornando a um estado pueril e intocado, uma autêntica tabula rasa, pronta para um novo dia, uma nova semana. Ah, as maravilhas da absolução instantânea, da redenção vicária!

É mais que estranho, de facto, e singularmente curioso, observar como a voz suprema da Santa Sé, o Papa, proclama audaciosamente que a Igreja Romana Apostólica Católica detém o monopólio exclusivo da verdade divina, relegando todas as outras doutrinas a meras imitações heréticas. O verdadeiro católico, aparentemente, tem o dever de olhar com condescendência todas as outras crenças, salvo o judaísmo, que recebe um aceno de reconhecimento como se de uma mera cortesia se tratasse.

Ah, quão reconfortante deve ser, viver neste pedestal de certeza inabalável, olhando lá do alto para o mar lamacento de plebeus espiritualmente desorientados, à deriva na própria imundice. E, que dizer da inabalável crença na ressurreição de Cristo, na incontestável pureza de Maria, e nos mirabolantes milagres do Messias? É necessária uma capacidade de digestão intelectual verdadeiramente robusta para engolir tais relatos, sem sequer um soluço de cepticismo, ou uma pausa para pensar criticamente. Poder-se-ia, quase, admirar o católico por possuir resiliência suficiente, para acreditar sem uma mísera prova, uma espécie de superpoder epistémico que insiste em não existir em pessoas como eu, por exemplo. Afinal, nesta dança de fé e dúvida, parecem mover-se num perpétuo tango de auto-reforço, onde a incerteza apenas os empurra para os braços ainda mais acolhedores da sua divindade. Oh, as paradoxais alegrias da fé cega!

Ah, e o encantador pecado original!? Que magnífica recepção ao mundo: chegamos já marcados, enlameados na suposta falha congénita de um antepassado distante. Porém, no auge da sua magnificência infinita, o divino lança-nos uma corda, esperando que, na nossa intrínseca imperfeição, consigamos subir por ela acima, e resgatar-nos dessa sentença pré-natal. Oh, que privilégio inexplicável! Que rifa cósmica nos calhou; Born sick, commanded to be well.

No coração palpitante de um século resplandecente com inovações tecnológicas e maravilhas cósmicas, é de uma ironia quase shakespeariana que certos indivíduos ainda se regozijem com escrituras antiquadas e dogmas, à semelhança de um melómano que insiste em ouvir vinis riscados, acreditando piamente estar diante de uma sinfonia imaculada. Com todo o cosmos a expor-se como um livro aberto à espera para ser lido, a predileção de alguns por se confinarem à prosa estanque de páginas que o tempo já esqueceu, imersas em alegorias tão deslocadas nesta era secular, é, no mínimo, caricata, estranha. Onde uns veem oráculos celestiais, eu constato meras fábulas embriagadas de imaginação, e acima de tudo, medo. Num universo em que deciframos os enigmas do ADN, das partículas subatómicas e das vastidões interestelares, existem aqueles que, em plena lucidez, decidem estagnar em debates sobre divindades cujos caprichos, por coincidência cósmica, mimetizam os vícios e virtudes humanas da sua época de invenção.

Ah, a espécie humana, engenheira de complexas redes neurais artificiais, contudo, paradoxalmente cativa de tradições e lendas que o compasso da história já deveria ter consignado ao esquecimento. Esta dicotomia é quase uma guloseima intelectual, tingida com o travo semi-agridoce do tragicómico. A verdadeira mestria do discernimento reside na habilidade de separar a incessante e genuína procura pela verdade, das reconfortantes, mas ilusórias, canções de embalar da nossa infância colectiva. É mais que estranho, é bizarro, que ainda hoje nos debatamos entre os avanços da era moderna, e os ecos de eras longínquas.


João Nascimento

2023