
INTRODUÇÃO
O mundo da fé é frequentemente imbuído de conceitos complexos, e a redenção vicária, por sua vez, é um desses temas que não agitam somente as mentes dos devotos, mas também geram intriga e polémica entre aqueles que se dedicam à filosofia e à ciência, e ao estudo da ética e moralidade. Para um ateu com inclinações científicas e uma afinidade pela reflexão filosófica, esse conceito torna-se particularmente perturbador, a um nível quase escatológico.
Neste artigo, tentarei mergulhar nas profundezas lamacentas da redenção vicária, não apenas para desvendar as suas implicações morais, mas também para questionar porque é que a ideia é aceite, na sua generalidade, pela maior parte das pessoas, até os não cristãos, neste caso.
IMORALIDADE DA REDENÇÃO VICÁRIA
A redenção vicária, um conceito profundamente afincado nas tradições religiosas católicas, nunca passou, não passa, nem nunca passará despercebida pela lente crítica da moralidade humanista. Quando exploramos as suas implicações à luz da ética e da responsabilidade humana, emerge uma análise preocupante, contundente, que expõe as falhas intrínsecas desse mesmo conceito.
Uma Transferência Indesejada
No cerne da redenção vicária encontra-se a crença de que o sofrimento de um indivíduo pode eximir um conjunto de humanos dos seus pecados. Essa transferência de responsabilidade moral, embora extremamente atraente para alguns, desafia a nossa noção fundamental de justiça e ética. A ideia de que uma qualquer entidade divina pode absolver uma comunidade das suas acções menos morais por meio de um acto de sacrifício humano parece, no mínimo, macabra e mórbida, e qualquer um de nós teria o dever de tentar impedir a tortura de outro ser humano, se presenciássemos tal demonstração de barbaridade.
O cerne do problema reside em como essa transferência indesejada desafia o nosso sentido de justiça individual, e a ideia de que cada ser humano é responsável pelas suas próprias acções. A transferência indesejada presente na redenção vicária coloca em xeque as nossas concepções de causalidade moral, justiça individual e responsabilidade pessoal. A análise do conceito de redenção vicária não é apenas um exercício filosófico, mas é também uma exploração das complexidades que cercam as crenças, e os sistemas morais que moldam a nossa visão do mundo.
A Negação da Responsabilidade Individual
A moralidade está intrinsecamente ligada à responsabilidade individual. No entanto, a redenção vicária introduz uma narrativa que, na sua essência, nega essa mesma responsabilidade. Ela sugere que um sacrifício pode limpar a consciência de qualquer indivíduo das suas transgressões mais grotescas, independentemente da sua intenção ou consciência. Isso, na minha mais humilde opinião e perspectiva, lança imediatamente uma sombra escura e duvidosa sobre a importância do livre-arbítrio, e da responsabilidade pessoal, comprometendo os alicerces da ética.
Quando se mergulha neste aspecto da redenção vicária, torna-se evidente que a ridícula ideia de absolver alguém das suas acções através do sofrimento de outro ser, levanta questões morais profundas. Afinal, se a moralidade deriva directamente da capacidade de fazer escolhas conscientes, e avaliar as suas consequências, então transferir a responsabilidade moral para um terceiro contradiz o próprio cerne da ética humana.
Pode-se fazer a seguinte analogia: imagine-se que alguém cometeu um crime horrível e, num gesto de lealdade, outro indivíduo oferece-se para cumprir a pena de prisão no lugar do perpetrador. Embora esse acto possa ser movido por um sentimento nobre de amizade ou amor, não altera o facto de que o crime foi cometido, aconteceu, existiu. A responsabilidade moral pela acção criminosa permanece intacta, e qualquer tentativa de transferência dessa responsabilidade para outra pessoa será um exercício em futilidade.
A negação da responsabilidade individual inerente à redenção vicária contraria os princípios fundamentais de ética. A responsabilidade moral não pode ser delegada, ou subcontratada. Cada um de nós é o derradeiro guardião das nossas acções e escolhas, e essa responsabilidade inerente é um elemento fundamental da nossa humanidade. A redenção vicária, ao negar essa responsabilidade, não só conspurca a nossa compreensão de ética, mas também nos impede de enfrentar honestamente as consequências das nossas acções, e de crescer como seres morais autónomos, cientes do seu precário lugar no cosmos.
A Desconexão da Realidade
A redenção vicária também carece de uma conexão com a realidade empírica, e os princípios da causalidade. A nossa compreensão científica ensina-nos que as acções têm consequências palpáveis, e não podem ser eliminadas da existência por uma oferenda. Todavia, a redenção vicária ignora essa simples lógica, e promove uma visão de absolvição que não encontra fundamento algum na nossa experiência do mundo real.
A nossa compreensão científica do mundo baseia-se na observação cuidadosa, na análise empírica, e na inferência lógica. A causa leva ao efeito, acção gera reacção, em jeito Newtoniano. Esta compreensão estende-se a todas as facetas da nossa vida, e é um princípio pelo qual controlamos o nosso comportamento, e tomamos decisões. Contudo, a redenção vicária parece operar num plano separado, onde as leis da realidade são suspensas em nome da crença.
Além disso, podemos considerar a religião como uma tentativa de escape de uma realidade crua, que nos faz sentir isolados, espiritualmente falando. A consciência da nossa existência num cosmos indiferente pode ser angustiante, triste. No contexto da vastidão cósmica, o nosso planeta é apenas um grão de poeira à deriva pelo espaço interstelar, e a religião, muitas vezes, oferece um refúgio emocional, uma maneira de encontrar significado e propósito, e muitas pessoas caem nesta ratoeira, e prendendo-se a elas próprias com algemas forjadas pela sua própria mente. Ao oferecer uma solução rápida para dilemas morais, este conceito ignora a realidade que nos rodeia. Pode ser vista como uma tentativa de lidar com as complexidades e ambiguidades do mundo humano, substituindo-as por uma narrativa simplista de absolvição.
A Necessidade de Enfrentar as Consequências
A moralidade e a ética não podem ser subvertidas através de actos de sacrifício, através da tortura e eventual extirpação de um homo sapiens, neste caso. A verdadeira redenção não pode ser encontrada na transferência de responsabilidade, mas sim no confronto das consequências das nossas acções. A imoralidade da redenção vicária reside na sua tentativa de escapar das ramificações morais das nossas escolhas, negando-nos a oportunidade de crescer, aprender e fazer escolhas mais justas e éticas no futuro.
ACTUALIDADE
Na actualidade, a redenção vicária permanece sob o escrutínio moral e ético, sobretudo à luz dos avanços na compreensão da ética, de psicologia e de sociologia. Num mundo que valoriza cada vez mais a autonomia moral e a responsabilidade individual, a ideia de que um acto de sacrifício possa absolver um indivíduo das suas próprias escolhas e acções, parece contradizer a noção de prestação de contas pessoal. A ética contemporânea enfatiza a importância de enfrentar as consequências morais das nossas ações, e de trabalhar para o bem comum de forma consciente e deliberada, e de forma activa abordar injustiças e problemas éticos. Em vez de encorajar este tipo de comportamento, e promover o progresso moral, a redenção vicária leva a uma complacência moral, onde a culpa é transferida e não confrontada, numa tentativa frustrada de resolver as problemáticas que assaltam a nossa existência.
Além disso, a redenção vicária também pode ser considerada uma maneira de escapar da responsabilidade colectiva. O mundo, hoje em dia, é interconectado e interdependente, e as acções individuais têm um impacto que se pode estender muito para além das fronteiras pessoais. A transferência de responsabilidade moral para um único acto de sacrifício, não reflecte a complexidade das consequências éticas das nossas ações num contexto global. A ética contemporânea exige uma abordagem mais abrangente, que leve em consideração as ramificações sociais, ambientais e globais das nossas escolhas.
Em última análise, a redenção vicária permanece questionável na actualidade, pois suscita preocupações éticas e morais sobre a responsabilidade, a acção proactiva e a consciência moral. Enquanto a crença pode ter raízes antigas, a evolução do pensamento ético e as demandas de um mundo em constante mudança, levam-nos a reconsiderar a validade e a relevância de uma abordagem que procura absolver sem enfrentar a verdadeira complexidade da condição humana.
CONCLUSÃO
À medida que se descortinam as camadas intrincadas da redenção vicária, emerge uma interrogação tão pertinente quanto irónica: terá a religião cristã edificado a sua estrutura moral sobre um fundamento paradoxalmente imoral? No epicentro desta fé reside a narrativa da tortura e morte de Jesus, seguida da sua triunfante ressurreição. O contraste entre o suposto propósito nobre – a redenção da humanidade, – e a natureza intrinsecamente dolorosa do evento central da fé, desencadeia uma reflexão profunda sobre os paradoxos da moralidade religiosa.
A redenção vicária, ao transferir a responsabilidade moral de um indivíduo para outro, lança um véu escuro e opaco sobre os princípios fundamentais da ética e da justiça. A procura pela absolução através do sofrimento alheio colide de frente com a noção universal de responsabilidade pessoal, fazendo com que se questione a coesão entre as crenças religiosas, e os padrões éticos que governam a sociedade moderna.
A ironia reside na potencial desconexão entre a mensagem de amor, compaixão e redenção proclamada pelo cristianismo, e a base sobre a qual ela repousa. A imagem do sacrifício de Jesus, propagada como um acto supremo de amor divino, coexiste com a representação de uma tortura inquestionavelmente brutal. A ressurreição, celebrada como um símbolo de renovação e esperança, surge das profundezas da morte e do sofrimento humano. Tal paradoxo desafia-nos a explorar os limites da moralidade, e a complexidade das crenças religiosas.
A interrogação persiste: será que a religião cristã, com o seu núcleo fundamentado em eventos que desafiam os princípios éticos que defendemos, tem, ironicamente, erguido uma estrutura moral sobre fundamentos intrinsecamente imorais? Talvez essa ambiguidade seja o reflexo da complexidade do homo sapiens, onde o mistério e a contradição coexistem, lembrando-nos de que os nossos sistemas de crenças podem espelhar a nossa busca incessante por significado e transcendência, mesmo quando confrontados com os paradoxos inerentes à condição humana.
João Nascimento
2023